Recanto do Beija-Flor apresenta sua sinopse para o Carnaval Virtual 2016

Menininha do Gantois, Menininha do Tororó: Recanto de Água doce e fértil…

Oxum-abutre trouxe a chuva de volta
E com ela a fertilidade do solo e os alimentos
E graças a Oxum a humanidade não pereceu.

(Prandi, A mitologia dos Orixás, p. 343)

Uma das histórias mais bonitas que nos foram trazidas pela força das vozes dos negros aqui chegados d`África remete-nos a abdicação de Oxum de seus atributos mais conhecidos: a beleza, a vaidade e todas as efemeridades atrelada a Ela (Oxum).

Rezam as vozes que no início dos tempos do mundo, os orixás se rebelaram contra Olodumare-Senhor Supremo. Eles alegavam que o Olodumare vivia muito distante. Uma distância espiritual, afetiva e geográfica para com os próprios orixás e os homens. Decidiram não mais prestarem obediência ao Senhor Supremo e também destroná-lo, distribuindo entre eles o poder do axé. Olorum irado tomou medidas drásticas: retirou a chuva da terra e a prendeu no céu. O Ayê foi tomado por uma terrível seca. Com a seca veio a fome e com a fome a morte. O ronco das barrigas e a palidez das faces começaram a falar mais alto que o orgulho dos rebeldes e seus planos de levante. Os orixás passaram dias em reuniões e resolveram, por unanimidade, ir a Olodumare implorar perdão para que a vida na Terra voltasse ao normal. Eles tinham, no entanto, um imenso problema: como chegar à inalcançável e distante morada do Senhor Supremo? Enviaram pássaros mensageiros, mas todos pereciam exaustos, sem sequer chegarem perto da casa de Olorun. A seca e a fome devastavam a Terra e seus habitantes. Foi quando Oxum resolveu intervir. A vaidosa Oxum transformou-se num belíssimo pavão o que causou gargalhada no concílio de Orixas.Um tremor de gargalhadas sacudiu a Terra: “Vais acabar se machucando, gracinha!”. E lá se foi Oxum-pavão seguindo em direção ao Sol, voando as alturas do Orum em busca do Palácio do Senhor. Mesmo tão exausta Oxum estava determinada em sua missão. O sol foi enegrecendo suas lindas penas de pavão. As penas da cabeça ficaram ressequidas, o pavão tinha queimaduras em todo o corpo. Quase morta, Oxum, a ave em estado miserável, chegou à porta do palácio de Olodumare. O Senhor Supremo se compadeceu da pobre ave e a alimentou e deu água. Olorun perguntou a ave feia, sem nenhuma beleza, o porquê de tal jornada. A ave, agora transfigurada num feio abutre, explicou ao senhor o que estava ocorrendo no Ayê. Descreveu homens morrendo de inanição, a falta da água e o total caos da Terra.

Agora damos voz às próprias vozes de África:

Olodumare, penalizado com a pobre ave, deu-lhe a chuva
Para que ela devolvesse à Terra.
E nomeou o abutre mensageiro seu,
Pois só ele vence a inalcançável distância em que está Olodumare.
O abutre então voltou à Terra trazendo a chuva.

O enredo aqui proposto conta a história de Mãe Menininha do Gantois. Uma das Oxuns mais bonitas encarnadas nesse Ayê (Brasil) de fomes, desnutrições, misérias carnais e espirituais de vários tipos.

Mãe Menininha narrava a seus ouvintes, de forma insistente, a história acima retratada. Para salvar a humanidade Oxum teve que deixar de lado sua beleza, vaidade e todas as efemeridades. A jornada de dor e salvação transformou o lindo pavão num miserável abutre. Mãe Menininha insistia no fato inexorável de que a vida é uma jornada difícil, mas temos que nos adaptar a seus sinuosos caminhos. Como a água doce que se adapta aos cursos do rio. Água doce, porém inquebrantável, como a própria incansável Oxum na busca do perdão de Olorum.

Mãe Menininha nasceu Maria Escolástica da Conceição do Nazaré. Nasceu sob o signo de apreensão da água: aquário. Encarnou no final do século XIX na cidade de São Salvador, seis anos após a libertação dos escravos. A única maneira de obter água, no final do século XIX, era a extenuante caminhada a sagrada fonte do Tororó (região que hoje é conhecida pelo estádio da Fonte Nova). Era no caminho diário para a fonte que os negros e outros populares narravam histórias de África, do Brasil, desse e de outros mundos. Foi nessa peregrinação diária que teve seus primeiros contatos com as histórias da bela, doce e destemida Oxum. Como narram as vozes ancestrais foi Olorun que mandou essa filha de Oxum “tomar conta da gente e tudo cuidar”…Ela vem-nos sob a forma de estrela, forma de abutre, forma de Sol, forma de água… O pássaro da prosperidade, o pássaro da fertilidade, o pássaro da beleza da abnegação.

Mãe menininha irradiava doçura e beleza, mas também era enérgica e sábia, sem ser arrogante… Desde os oito anos de idade se entregou aos encantados e foi abençoada por eles. De aparência franzina veio o carinhoso diminutivo “menininha”. O “mãe” vem da função espiritual que religa homem ao plano espiritual. Uma conciliação barroca, baiana, brasileira, por excelência da figura da “mãe sábia”, com a figura da “menina pura”. Daí vem a força inabalável de seu carisma. Mãe menininha viveu nessa terra de paradoxos encantando um mundo desencantado, purificando terras inférteis com suas mensagens e conselhos de esperança e sabedoria infinitas.

Como encantada que habita esse e outros mundos Mãe Menininha tinha um sonho recorrente. No seu universo onírico uma linda menininha de cabelos loiros vinha chamá-la para brincar. Ela aceitava e as duas iam juntas para a praia. O estimado brinquedo era sempre o mesmo: os búzios. Segundo sua neta Mônica Millet, Mãe Menininha foi introduzida nos jogo dos Búzios, com sua professora Oxum que lhe aparecia nos seus sonhos.

Foi a quarta Iyálorixá do Terreiro do Gantois aos 24 anos de idade e a mais proeminente Iyálorixá brasileira. Situado num local alto e cercado por um bosque o terreiro do Gantois ficava mais protegido das recorrentes incursões policiais às religiosidades de ascendência africana. Eram tempos nos quais religiões não católicas eram “caso de polícia”. A figura da “mãe menina” foi essencial para a popularização do Candomblé no Brasil.

Samba e religiões não oficiais têm histórias análogas no Brasil. É a partir dos anos 1930 que religiões, ritmos e o que ficou conhecido como “cultura popular” são reconhecidos e legalizados pelo Estado brasileiro. Se no mundo do samba intelectuais se encontram com sambistas nesse período, o mesmo ocorre com a intelectualidade baiana para com as religiões de matriz africana. Mãe Menininha fez do Terreiro do Gantois uma festejada morada de diplomacia. Recebia em sua morada de paz médicos, presidentes da república, diplomatas, artistas, intelectuais, padres, populares, sempre ofertando-lhes, com paciência, carinho e alegria, seus sábios conselhos. Tinha voz meiga e palavras gentis. Transmitia a oralidade ancestral da sabedoria afro brasileira a todos com generosidade infinita. Mãe de santo, mãe do Gantois, Mãe do Brasil.

Mãe Menininha conviveu com homens que fizeram da Bahia o Brasil.Ela também é uma das fundadoras dessa Bahia orgulhosa de suas, de nossas coisas. Mãe e amiga de toda uma geração de excepcionais expoentes da cultura local/nacional, foi representada nas penas do gigante Jorge Amado, nas vozes-letras de Caymmi, Caetano, Bethânia e tantas outras encantadas vozes e retratada nos quadros de Carybé (argentino que se converteu ao ” modo de ser” brasileiro ao se apaixonar pelos gostos, coisas e encantos da Bahia). Jorge narrava a Bahia, Caymmi cantava, Carybé desenhava e Mãe Menininha abençoava…

Mãe Menininha freqüentava a missa semanalmente. Um exemplo de humildade e busca freqüente pela sabedoria.Quando assumiu a casa do Gantois sabia das dificuldades do mundo. Esteve temerosa, com receio da jornada a ela dada como missão, como todo humano em vida. Viveu toda sua vida escutando pessoas com suas fraquezas humanas. Deu a todos conforto, amenizou suas dores, irrigou seus solos desesperados. Ofereceu água doce, água fértil e jamais viu num ser humano terreno infértil. Cultivou com afinco a humanidade como lhe designou Olorum.

Em 2016 o Brasil completa 30 anos sem Mãe Menininha por essas terras. Essas três décadas não enferrujaram seus ensinamentos, não calaram sua voz meiga, sua figura de mãe que escuta, acolhe e aconselha. Se a carne se foi com um processo natural que estamos sujeitos todos, da vida e morte, o verbo continua… Verbo e vozes que continuam a contar, a cantar e a narrar a história dessa mãe menina da África, da Bahia, do Brasil, do mundo. Transfigurada numa revoada de belos pássaros brancos, assim como Oxum ao se transformar em pomba liberta da prisão de Xangô, Menininha do Gantois sobrevoa o Ayê dos vivos, transmitindo-nos tolerância, paz, e o axé a esse mundo, ainda desencantado. Hoje é carnaval. Hoje a Recanto é do Gantois. A Recanto do Beija Flor é o lar da Oxum mais bonita.

Cantemos e oremos:

Olorum quem mandou essa filha de Oxum
Tomar conta da gente e de tudo cuidar
Olorum quem mandou eô ora iê iê ô

SETORIZAÇÃO DO DESFILE

SETOR 1: História e narrativas mágicas se misturam para explicar o mundo. A chuva trazida ao Ayê (a Terra) por Oxum é associada à abolição da escravidão (1888). Mãe Menininha vem ao mundo em 1896 e vive numa Salvador com marcas profundas de 4 séculos de escravidão. Retratamos nesse setor a Salvador da infância de Mãe Menininha. Salvador era uma cidade pujante, com a forte presença do Candomblé e suas múltiplas facetas.

SETOR 2: Esse setor se inicia com uma narrativa onírica: o sonho recorrente de Mãe Menininha. Destacamos a repressão oficial as religiões de matrizes afro-brasileiras durante a Primeira República (1889-1930). Encerramos esse setor com uma peculiaridade baiana: era comum, como ainda é, membros da elite frequentarem as casas de Candomblé. Essa ala vem com um polêmico nome: “a elite batuqueira, a elite macumbeira”.

SETOR 3: Foi na década de 1930 que o candomblé foi “oficializado” como uma religião “genuinamente” brasileira. Essa oficialização se deu no bojo de reconhecimento da cultura popular como cultura nacional. Cabe lembrar que foram fundamentais a esse reconhecimento as várias manifestações do movimento regionalista durante os anos de 1920, 1930 e 1940. Esse reconhecimento foi uma conquista de pelo menos três gerações. Nesse momento de que era moderno e “nosso” ser “mestiço”, as manifestações culturais ligadas à África passam a ser bem quistas. O candomblé além de uma religião típica da Bahia passa a ser expressão do Brasil.

SETOR 4: O quarto setor começa em festa no mundo dos vivos e termina em festa no mundo espiritual. Mãe Menininha foi líder do Gantois e do Candomblé ajudando a popularizar a religião da Bahia para o Brasil e do Brasil para o mundo. O candomblé é considerado uma das religiões mais: ” tolerantes e flexíveis religiões do mundo” (Dicionário do Brasil Imperial. p.115). Mãe Menininha teve auxílio de duas gerações de baianos que ajudaram a tornar a Bahia um dos estados mais eminentes do Brasil. A primeira geração é formada pela trinca: Jorge Amado, Carybé e Dorival Caymmi. O primeiro escreveu a Bahia, o segundo a desenhou em charges inesquecíveis e o terceiro a cantou com voz marcante.

Author: Carnaval Virtual

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