Em mais um retorno ano Carnaval Virtual, o GRESV Acadêmicos de Madureira apresentou o enredo que levará para a disputa do Grupo de Acesso II na edição comemorativa dos 10 anos do Carnaval Virtual.
De autoria de Ruan Avelar, a agremiação irá defender, em 2025, o enredo “Caravelas: o canto histórico das marés”.
Confira abaixa sinopse oficial:
Caravelas: o canto histórico das marés
O enredo da Acadêmicos de Madureira propõe uma travessia pelo tempo e pela memória, rumo às origens de Caravelas, cidade do extremo sul da Bahia. A narrativa que guia este desfile não se restringe ao registro cronológico de eventos fundacionais, mas busca articular os entrelaçamentos históricos, culturais e estéticos que constituem a identidade caravelense, especialmente a partir da experiência dos povos indígenas e afrodescendentes. É nesse sentido que o carnaval surge como plataforma de expressão e memória coletiva, fazendo ecoar, na avenida, o canto persistente das marés.
A história de Caravelas remonta ao ano de 1503, quando a expedição comandada por Gonçalo Coelho e integrada por Américo Vespúcio aportou na costa sul da Bahia. Ali foi erguida uma feitoria fortificada, um marco das primeiras tentativas portuguesas de ocupação do território que, no entanto, desapareceu sob o silêncio da história oficial, possivelmente atacada pelos tupiniquins que resistiam à ocupação estrangeira (Arquivo Municipal de Caravelas, 1990). Desde seu início, portanto, a cidade se constituiu como território de disputa, de apagamentos e de resistência.
Esse espaço, que antecede a própria ideia de cidade, era habitado por povos originários cuja presença ancestral moldou a geografia e os saberes locais. Os tupiniquins que dominavam a região entre o rio Camamu e o rio Mucuri vivenciavam formas de ocupação que não cabiam nas molduras coloniais. Suas lutas, estratégias de defesa e cosmovisões ainda sobrevivem nos territórios da oralidade e das práticas culturais de matriz indígena (FERREIRA; CARVALHO, 2022).
Com a fundação religiosa ocorrida em 1581, provavelmente por um padre jesuíta francês, inicia-se um novo ciclo no processo de povoamento. A fé católica se impôs como matriz civilizatória, mas encontrou, no sincretismo, um terreno fértil para a coexistência e a fusão de mundos simbólicos. A religiosidade local é marcada por um entrelaçamento de crenças cristãs e afro-brasileiras, em que Iemanjá e Santo Antônio coexistem nos altares e nas ruas, revelando a força de uma religiosidade popular híbrida e plural (MELLO, 2003).
Durante o século XVII, Caravelas foi palco de ataques e disputas entre portugueses e holandeses, mas foi no século XVIII, com a consolidação da vila de Santo Antônio do Rio das Caravelas, que o território começou a se estruturar como centro econômico e político regional. A economia pesqueira e agrícola, ainda que afetada por ciclos de exploração predatória, consolidou modos de vida comunitários e relações com o território profundamente enraizadas na cultura popular (BARROS, 2016).
Com o passar dos séculos, os grupos afrodescendentes, muitos dos quais provenientes de comunidades quilombolas ou assentamentos informais, passaram a ter papel fundamental na conformação cultural da cidade. Essa presença se manifesta não apenas nos modos de trabalhar e rezar, mas principalmente nas formas de celebrar, como o carnaval, os festejos de Iemanjá e as brincadeiras dos “blocos de índio” e dos “caretas” (MELLO, 2003; SILVA, 2022).
A experiência estética do carnaval de rua em Caravelas — com seus blocos alternativos, cortejos improvisados e rituais performáticos — constitui uma pedagogia do cotidiano que tensiona a separação entre arte e vida. Esses territórios são também lugares de epistemologias outras, nas quais a oralidade, o corpo e a ancestralidade são dispositivos de resistência e reinvenção (SILVA, 2022).
Ao trazer essa narrativa para o desfile, a Acadêmicos de Madureira propõe uma releitura crítica e sensível do papel da cidade na formação da identidade brasileira. O enredo não apenas recorre aos fatos históricos, mas os interpreta à luz das contribuições esquecidas ou silenciadas, resgatando os saberes tradicionais, o patrimônio imaterial e a potência criativa dos povos ribeirinhos e das comunidades periféricas.
Com este enredo, a Acadêmicos de Madureira reafirma seu compromisso com a valorização da memória social e com a potência estética das comunidades historicamente marginalizadas. Ao cantar Caravelas, a escola canta também o Brasil profundo, plural, mestiço e insurgente.
Referências bibliográficas:
ARQUIVO MUNICIPAL DE CARAVELAS. A história de Caravelas começa com a própria história do Brasil. Caravelas, 1990.
BARROS, Janaína Gonçalves Rios. Abr’olhos! Uma análise histórica do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos com as comunidades pesqueiras de Caravelas, BA.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Viçosa, 2016.
FERREIRA, Maria de Fátima de Andrade; CARVALHO, Maria do Rosário Gonçalves. “Etnicidade, (contra)mestiçagem e saberes afroindígenas na zona de contato em Caravelas, Bahia”. In: Etnicidades, Gênero e Educação: olhares plurais. UESB, 2022.
MELLO, Cecília Campello do Amaral. Obras de arte e conceitos: cultura e antropologia do ponto de vista de um grupo afro-indígena do sul da Bahia.
Dissertação (Mestrado) – Museu Nacional/UFRJ, 2003.
MELLO, Cecília Campello do Amaral. “Pessoas, Acontecimentos e Objetos de Arte em um Movimento Cultural em Caravelas, Bahia”. Revista Ilha, UFSC, v. 11, n. 2, 2010.
SILVA, Luan Ériclis Damázio da. Reflexões entre as raízes do mangue e os movimentos das ruas: o conhecimento tradicional e o patrimônio imaterial como elementos de (re)existência afroindígena em Caravelas-BA. Dissertação (Mestrado) – UFSB, 2022.