Campeã do grupo II na edição passada, o BVC Colorados do Samba apresentou o enredo que levará para a disputa do Grupo de Acesso I, na edição comemorativa dos 10 anos do Carnaval Virtual.
De autoria de Henrique Pessoa, a agremiação irá defender, em 2025, o enredo “Kananciuê”.
Confira abaixa sinopse oficial:
Kananciuê
Na poeira vermelha das estradas esquecidas, nasceu uma estrela. Colorados é seu nome — forjada no barro, tingida de urucum. Hoje, carrega os cantos do tempo antigo e desfila não apenas entre mortais, mas entre deuses. Porque só quem dança no abismo pode renascer campeão no fim do mundo.
Quando a terra fala, não é apenas samba — é trovão antigo, memória esquecida. E a Colorados, em seu retorno encantado, abre os portais do impossível para cantar o que nenhum ouvido ousou guardar: a saga de Kananciuê, o Criador, o Ausente, o que volta.
Antes de haver chão, havia eco. Antes da palavra, o sopro. Kananciuê, com olhos de pedraestrela, desenhou o mundo na pele do nada. Criou o fogo num assovio, os rios num soluço. Das raízes, moldou caminhos; das folhas, as trilhas do tempo. Das cascatas, o peso da saudade. Das flores, o primeiro canto da beleza. E dos espinhos, o aviso: tudo é belo, mas tudo também fere.
Tudo era fragrância e cor, mas às margens do Araguaia, os Aruanãs choravam sua forma incompleta. Suplicaram a Kananciuê por vida na Terra — queriam ser homem, habitar o chão, atravessar os mistérios além dos rios. E, por sua graça, surgiram os Karajás — o povo da água. Mas ainda faltava algo…
Na vastidão do mundo inacabado, Kananciuê buscou o tempo: o dia perdido, a luz extinta, o sol que um deus traiçoeiro escondera. Criou lamparinas com vagalumes — que logo morriam. Caminhou então entre raízes até encontrar os astros adormecidos. Mas antes da alvorada, enfrentou o abismo: o Urubu-Rei, guardião do fim. Não lutou só. Das sombras, surgiram poderosas feiticeiras: a Raposa, com seu riso encantado, e a Varejeira, senhora da dança da morte. Juntas, romperam a noite e rasgaram as nuvens com feitiços, trazendo a luz de volta.
Certo dia, repousando à beira do Araguaia, Kananciuê adormeceu em transe. Sonhava com os antigos, quando jovens inãs, sedentos de poder, se aproximaram do fogo sagrado. Cobiçaram a centelha da criação. Mas o Criador despertou com olhos de trovão e, num sopro furioso, transformouos em sapos. Inchados de vaidade, coaxam até hoje, em noites de luar.
Noutra aurora, Kananciuê viu uma arraia ferida, debatendo-se em desespero. Acolheu-a, curou-a, e presenteou-a com um espinho envenenado pelo fogo — assim nasceu a temida Boro de Fogo.
E não fossem os Ohoti Bedu, o que seria dos bichos? Foi deles a compaixão que salvou uma tartaruga enganada pelos macacos. Despedaçada, foi reconstruída por Indianakatu, que com um sopro lhe devolveu a vida — e assim surgiu o belo jabuti.
Cada história, uma flor. Cada lenda, uma estrela. E do mundo, enfim, ouvia-se o seu cantar.
Na floresta não há raiva — há justiça. E ela veio como chuva de fogo, como enchente que engole lembranças. As máscaras tiveram seus segredos revelados. A insistência da mulher em descobrir os mistérios despertou a ira dos espíritos da natureza. A aldeia escureceu. Um pandemônio começou.
O sol se escondeu sob nuvens negras. Pedras e fogo caíram do céu. Uma fenda rasgou a terra. Mulheres foram perseguidas. O pajé avisara — e, após um estrondo, o céu desabou, lavando a terra e apagando quase todos os vestígios dos inãs. Era o fim. Restaram apenas pedras e cinzas.
Mas da fenda, um grunhido rompeu o silêncio. Era Diuré-Biná, o que revelou o segredo das máscaras. Sobreviveu. E, com as mulheres-periquito, repovoou a terra.
Os dias correram, os anos passaram, e lendas brotaram aos montes. Como a da bela inã que amou uma estrela — mas rejeitou seu amor ao vê-lo velho. A irmã, sim, o amou, e com ele voltou ao firmamento. A vaidosa foi transformada em coruja, condenada a assistir eternamente ao amor que negou.
Depois da destruição, a força feminina emergiu. Grandes feiticeiras se ergueram — como a Mulher-Cobra, que encantou um inã fraco, transformando-o em guerreiro capaz de enfrentar qualquer fera, encantada ou não.
O tempo passou. E os homens esqueceram os deuses.
As aldeias cresceram. Os nomes sagrados viraram eco. Kananciuê Inã — homem e divindade — virou lenda contada em noites de vinho e urucum. Mas a memória segue trilhas próprias. E, numa caçada, ele voltou.
Surgiu entre os veados, rindo como criança, urrando como fera, rasgando o véu entre mundos. Era ele. Mas quem lembrava?
Levaram-no à aldeia. Kobehi, o novo feiticeiro, zombou. A festa já começara. Máscaras brilhavam, mulheres dançavam, homens bebiam. Mas Kananciuê via apenas decadência. Clamou: “Tragam-me fumo!” Riram. “Quero meu cachimbo!” Riram mais. Deram-lhe vinho, mulher e desprezo.
Então ele fumou. E no transe dançou com os espíritos. Girou, cantou palavras esquecidas… e tombou.
Despertou sozinho, na terra que fora sua. Clamou: “Onde está Maheíco, minha esposa? Onde os Bedu, os verdadeiros feiticeiros?”
Ninguém respondeu.
Então, o amor virou ira. O esquecido virou fúria. Arremessou cabaças aos céus. Invocou trovões. Fez-se piranha e perseguiu os ingratos pelas águas do rio.
Veio a tempestade. Os rios se fundiram num só ventre. Canoas afundaram. A floresta ardeu. Os ventos uivaram.
No último suspiro, os inãs lembraram-se da magia. E pediram perdão. Clamaram por Kananciuê.
E ele os poupou.
Afundaram nos lagos eternos. Morreram homens, renasceram Aruanãs — peixes sagrados que guardam o segredo do tempo.
Do fundo do mundo, algo brilhou. Hariuá, o Aruanã sonhador, viu a luz. Rompeu a pele das águas e virou homem. Outros o seguiram. Construíram aldeias com lembranças do sagrado. Mas entre troncos, serpentes. Entre frutos, veneno. Kobêhi, o aprendiz, guardou o caminho de volta. O ciclo se fechou — não em destruição, mas em renascimento.
E as lendas voltaram a andar sobre a Terra.
Agora, é a avenida que vira floresta. O povo canta como quem reza. O rufar dos tambores sacode o tempo.
Colorados vem — com o vermelho do sangue e do sol poente. Coroada por ancestrais. Abençoada por Kananciuê. Erguida sobre os ossos do mundo antigo.
E quando, no fim do mundo, só restar o canto — será o samba da Colorados que vencerá.
E o carnaval, enfim, será sagrado outra vez.