7ª colocada do grupo na edição passada, o GRESV Estrela Guia apresentou o enredo que levará para a disputa do Grupo Especial, na edição comemorativa dos 10 anos do Carnaval Virtual.
De autoria de Facundo Ortega, a agremiação irá defender, em 2025, o enredo “O Santo Rei dos Cambá”.
Confira abaixa sinopse oficial:
O Santo Rei dos Cambá
Cruzando rios e destinos, vindos do Paraguai, de Buenos Aires, de Santa Fé…Em Corrientes, a pele preta pisava em solo novo, porém os passos carregavam memórias ancestrais.
Naquela terra estranha, a imposição da fé Cristã assombrava e oprimia. Porém, os povos africanos, com alma forte e olhos brilhando fé, não esqueceu os seus: Oxum se encantou no espelho d’água da Virgem Maria; Olorum soprou bênçãos ao lado de Tupã. E Xangô, o Rei da justiça e trovão, encontrou em São Baltazar a resistência e sincretismo: negro como a noite, nobre como rei.
Com a licença de seus senhores, em meados do século XVIII, os negros tomavam as ruas em batuque e dança. Era o Candombe! E no coração da fé pulsava São Baltazar, o Rei Mago de pele escura, que vestia as cores de Xangô e recebia flores, cantos e orações. Ali, a devoção era resistência.
Baltazar não era só santo — era símbolo, era espelho, era liberdade no compasso do tambor.
As Cofradías, Guardiãs do Sagrado, nasceriam em 1772 com a Cofradía de San Baltazar y Ánimas. Dela brotaram irmandades por todo o virreinato. Reuniam-se não só por fé, mas por identidade — negras e negros que queriam viver, sorrir, cantar, mesmo sob o olhar dos opressores.
As festas eram cores, rezas, fantasias, procissões…
Nas ruas, com permissão dos donos e bênção dos padres, a alma negra se manifestava em ritmo, dança e fé. As cofradías eram escudos — e também asas.
O tempo soprou liberdade: em 1812, os ventres foram libertos.
Com o fim da escravidão em 1852, os negros buscaram morada. E a acharam, na beira do rio, sob as bençãos de Oxum, chão simples e fértil.
Ali cresceu um bairro — chamaram de Camba Cuá, a “cova dos negros”.
Misturaram-se os batuques aos cantos guaranis, os atabaques às rezas.
A fé de São Baltazar ganhou abrigo nos altares domésticos.
A casa virou templo. A festa, resistência. O bairro, berço da cultura afro-guarani.
Surge a Charanda: canto que dança, dança que conta. Com violão, tambor e coração, soava a alma de um povo:
“Es negro el ritmo en la sangre, pero al cantar
se expresa en dulces palabras el guaraní”
Fragmento do chamamé “Corrientes Cambá”
Chega cinco de Janeiro. Na casa da família Caballero, tudo se transforma: a sangría escorre em copos, as mãos se pintam, as roupas brilham.
Lá fora, o fogo dança com os tambores — a fogueira aquece e purifica a alma.
É hora do Saludo a los Santos del Barrio!
Em procissão sagrada, percorrem ruas e altares. Cada parada é um reencontro com a fé.
São Baltazar sorri em cada imagem, em cada vela acesa, em cada lágrima que escorre em forma de gratidão. A madrugada é longa. E é bela.
Camba cuápeaimé! Camba cuápeayu! É seis de janeiro, Dia de Reis, e a cidade desperta em festa! As crianças recebem seus presentes, as velas vermelhas se acendem, e os tambores começam a chamar o Santo Rei dos Cambá.
À noite, a cofradía e os devotos se reúnem na Igreja de Nossa Senhora da Mercê. Ali acontece a Missa da Epifania, memória viva do dia em que os Três Reis Magos visitaram o Menino Jesus. Nesse rito sagrado, são benzidas todas as imagens de San Baltazar que habitam os lares das famílias afrodescendentes.
Começa, então, o terceiro e mais aguardado momento da celebração: a Procissão das Tochas. Sob a luz de velas e tochas, Camba Cuá segue o cortejo, para que o Santo Rei “baixe e escute os pedidos”. Gozo (Alegria), Reza e Alabanza (Louvação) ganham formas e movimentos. Boleadoras de fogo, dançam e giram por ruas e vielas, como tochas vivas, fogo vivo de Xangô.
Há andores — majestosos, enfeitados com flores, velas e fitas vermelhas, levando imagens de San Baltazar. A cada esquina, somam-se baterias das comparsas (escolas de samba), misturando atabaques, tambores, caixas e tamborins num samba-candombe contagiante.
As bastoneras (rainhas de bateria) desfilam com realeza dançam e festejam ao lados dos Santos Vivos — homens que se vestem louvando o Santo Rei, com agbará vermelho, cetro e coroa, encarnando sua essência numa herança direta da incorporação dos Orixás. Junto a eles, a figura da Mulata, rainha do Congo, representa a feminilidade e a beleza negra.
No final da jornada, todos se reúnem no Parque Camba Cuá. Ali, charandas e candombes ecoam até o amanhecer. Os santos são acolhidos no eremitério, os agbarás renovados, as coroas benzidas.
Fieis deixam oferendas aos pés do santo.
A cidade inteira celebra a força da afrolatinidade e o orgulho do seu passado negro.
O dia 6 amanhece e anoitece com cantos, batuques e estandartes ao vento.
É a festa do povo. É o encontro das raízes.
Viva San Baltazar! Viva o Santo Rei dos Cambá! Viva a Afrolatinidade!
Setorização
1° Setor: Chegada dos Negros a Corrientes – Culto a Xangô
A presença da pele preta em Corrientes remonta ao século XVII. A origem da sua chegada a Corrientes é distinta das outras cidades com presença de escravizados. Cerca de 70% dos escravos vieram do Paraguai, de Buenos Aires e de Santa Fé. A maior quantidade dessa população na cidade foi entre 1820 e 1830.
Eles chegaram a um lugar com novos deuses, estranhos e opressores. As Oxums se misturaram com as Nossas Senhoras, os Oloruns com os Tupás e os Xangôs com São Baltazar.
Os primeiros registros do culto ao Santo Cambá datam de meados do século XVIII, quando os negros pediam permissão aos seus amos pra fazer o “Candombe” nas ruas, em dias dos seus santos. O santo com mais devotos era o Rei Mago Baltazar, que tinha a pele negra. Os afrodescendentes se viram identificados em sua figura e transformaram suas cores e símbolos para que se parecessem aos de Xangô.
2° Setor: As Cofradías Negras e o Afrocatolicismo
Em 1772 foi fundada a Cofradía de San Baltazar e Ánimas, a primeira de todas. Dali em diante foram surgindo essas instituições por todo o virreinato, com a finalidade de reexistir e fazer os candombes de lei, a través da fé católica nas festividades de santos.
A cofradía, para um negro, era uma maneira de não deixar morrer sua cultura — onde se bailava, se batucava, misturava, rezava e resistia ante a opressão negra. Para cada festividade, eles reuniam dinheiro, faziam fantasias e enfeitavam suas santas e andores, e com a permissão de seus donos e eclesiásticos, desfilavam pelas ruas da cidade com batuques e procissões.
3° Setor: Camba Cuá, a mistura Afro-Guarani na beira do Paraná
Com a liberdade dos ventres negros declarada em 1812 nas agora independentes Provincias Unidas do Río de la Plata, os amos aos poucos foram liberando os escravizados por alforria própria, já que na cidade de Corrientes era proibido o trabalho dos negros fora da casa dos senhores, até que em 1852 foi declarado o fim da escravidão.
Agora os negros e indígenas estavam livres, sem trabalho e quase na miséria. A maioria se assentou nas periferias rurais de Corrientes, à beira do Rio Paraná, onde trabalhavam como lavadeiras, pescadores ou a serviço de grandes serrarias e fazendas. Esse bairro, o mais populoso da cidade, foi chamado desdenhosamente de Camba Cuá (“Cova dos Negros”, em guarani). Ali se misturaram o batuque e a religiosidade dos afrodescendentes com a língua dos indígenas.
Com o crescimento da população branca, aumentou também o preconceito e o racismo a esse povo, que trouxe pra dentro das suas casas a fé que os representava: San Baltazar, que agora era venerado em altares nas próprias casas dos negros.
O candombe, agora chamado Jeroky (“baile”, em guarani), seguia comum nas noites do Camba Cuá, onde se misturava o batuque das tamboras, os cantos guaranis e os mbaracás (violão, em guarani) espanhóis. Ali se gerou a Charanda, gênero musical insígnia da negritude correntina, que também descendeu das milongas (ancestro musical do tango), do candombe e do chamamé, o gênero musical mais popular no litoral e um dos pilares da musicalidade folclórica argentina.
4° Setor: Cinco de fevereiro – Serenata dos Cambá
Tudo começa com a preparação dos devotos e da cofradía horas antes da meia-noite para receber o dia do santo. Na casa da família Caballero, que preside a Cofradía Refundada de San Baltazar, serve-se a tradicional Sangría — bebida feita de vinho, limão e soda — enquanto os bailarinos estão se maquiando e se vestindo.
Na rua é feita “a fogueira dos tambores”, onde os batuqueiros colocam suas tamboras e atabaques em volta do fogo pra afrouxar os couros, que assim são afinados. Já preparados, começa um dos três momentos mais importantes da festa: o Saludo a los Santos del Barrio (“Saudação aos Santos do Bairro”). Consiste em uma procissão dos batuqueiros e bailarinos pelas ruas do bairro, parando em cada casa das famílias afrodescendentes que possuem um altar próprio dedicado a San Baltazar, com uma imagem dele.
5° Setor: Seis de janeiro – Viva o Santo Rei dos Cambá! Viva a Afrolatinidade!
É dia dos Santos Reis e a cidade está de festa, as crianças recebem seus presentes e as velas vermelhas acendem. Já à noite, a cofradía e os devotos do santo se congregam na Igreja da Nossa Senhora da Mercê e ali é feita a missa da epifania, em lembrança do dia em que os três reis magos foram visitar o menino Jesus, ali se benzem todas as imagens de San Baltazar das famílias afrodescendentes. Terminada a missa se faz um candombe às portas da igreja e começa o terceiro momento mas importante da festividade, a “Procissão das Tochas” . Devotos e Cofrades saem em corso pelas ruas do Camba Cuá, tocando candombes e com velas y tochas acessas, iluminando as ruas pra que o santo “baixe a escutar os pedidos”.
Tem dançarinos na frente da procissão fazendo os três momentos do candombe: “Gozo” (Alegría), “Reza” e “Alabanza” (Louvação). Um grupo muito interessante são os devotos que levam “Boleadoras de Fogo” dançando e mexendo elas como tochas vivas. E o mais importante são os tantos andores de imagens enfeitadas de flores, velas e fitas vermelhas que reinam no cortejo. Á cada rua vai se somando uma bateria de cada uma das “comparsas” (escolas de samba) ao corso gigantesco, onde os atabaques e tamboras se misturam com as caixas, surdos e tamborins.
As “bastoneras” (rainhas de bateria) dançam ao ritmo do samba-candombe, as rainhas de todos os concursos e festas regionais se fazem presente desfilando ao lado de um dos elementos mais curiosos, os “Santos Vivos”. São homens que se fantasiam do Santo Rei com agbará (capa vermelha), cetro e coroa, e que “incorporam” a essência do santo (herança da incorporação dos orixás). Outra figura é a “mulata”, uma mulher que se fantasia de rainha do congo e representa a feminidade negra. O governador, deputados e funcionário estaduais se fazem presente na festa da negritude correntina.
Todas essas instituições, personalidades, ritmistas, figuras, andores e devotos confluem no Parque Camba Cuá, onde se tocam charandas e candombes, os santos são colocados no eremitério e a festa é gigantesca. Os agbarás das imagens são renovados y as coroas benzidas. Assim as pessoas deixam oferendas aos pés do santo e toda a cidade celebra a negritude correntina e o passado preto da cultura argentina. Essa é a festa do povo, onde confluem os pilares da sociedade local. Viva a Afroargentinidade! Viva o Santo Rei dos Cambá! Viva San Baltazar!