Folguedo Caipira apresenta enredo para o Carnaval Virtual 2025

Fazendo a sua estreia no grupo, a SCESV Folguedo Caipira apresentou o enredo que levará para a disputa do Grupo Especial, na edição comemorativa dos 10 anos do Carnaval Virtual.

De autoria de Alberto Lemos, a agremiação irá defender, em 2025, o enredo “Candil: O folguedo flamejante da fronteira”.

Confira abaixa sinopse oficial:

CANDIL, o Folguedo Flamejante da Fronteira

Sinopse

Após o trauma da Guerra do Paraguai, um dos conflitos mais sangrentos do continente, as fronteiras entre Brasil e Paraguai foram seladas com tinta e sangue. Sobre esse novo mapa geopolítico, ergueram-se os alicerces de um impetuoso projeto de ocupação do território. A pecuária extensiva, fomentada pelo Império, transformou a planície pantaneira em espaço de produção e circulação. Nas margens largas do rio Paraguai, o tempo passou a escorrer lentamente, como as boiadas pantaneiras, propiciando o nascimento de narrativas feitas de fronteiras móveis, encontros forjados na dor e reinvenções ritualizadas. É nesse chão de conflitos e travessias que a figura do boi passou a ser protagonista no imaginário do povo da região, que viu os rebanhos sendo conduzidos a laço, por terra e por água.

Por esses caminhos fluviais surgiram os grandes nomes da colonização, como Thomaz Larangeira, empresário articulador da Companhia Matte Larangeira, que fundou a cidade de Porto Murtinho como último entreposto brasileiro no rio Paraguai, o último ponto da extensão do rio enquanto fronteira, um marco entre o Brasil e o “outro lado”. Com a prosperidade do gado e da erva-mate, vieram também homens e mulheres paraguaios, em sua maioria indígenas guaranis, em busca de sobrevivência após terem seu território devastado. Essa migração silenciosa, movida pela perda e pela fé, trouxe não apenas braços para o trabalho, mas também novos universos simbólicos.

Logo oficial do enredo

Os guaranis trouxeram suas canoas leves, seus saberes sobre a madeira do quebracho, seus bordados, o hábito partilhado do tereré e outros costumes musicais e culinários. A língua guarani, falada em voz baixa pelo povo, tornou-se tecido vivo de memória e comunicação, misturando-se ao português e ao espanhol e formando um trilinguismo fluido, típico dessa região de fronteira.

Entre todas essas expressões, a mais potente é a devoção à Virgem de Caacupé, padroeira do Paraguai, cuja imagem azulada e pequena atravessou a fronteira escondida entre tecidos e promessas, ornada com fitas e cabelos trançados como ex-votos. A festa dedicada a ela, no dia 8 de dezembro, tornou-se o ponto alto do calendário espiritual da região, momento em que os limites entre o mundo visível e o invisível se entrelaçam.

Como parte das festividades em honra à santa, heranças ancestrais possibilitaram o surgimento do “Toro Candil”, criatura híbrida, mítica, flamejante. Seu corpo é uma armação de ferro e couro, às vezes feita de papel machê. Seus chifres, embebidos em querosene, são acesos como tochas incandescentes. Ele caminha pelas ruas da cidade em penumbra como um candelabro em movimento, símbolo da memória ancestral e da força regeneradora do fogo. Ninguém sabe ao certo quem o carrega. Seu condutor é anônimo, como os ancestrais que atravessaram o rio em silêncio, com a alma marcada pela guerra e pela esperança.

O Touro não caminha só. Ele é seguido pelos mascaritas, figuras liminares, andróginas, que habitam o espaço entre o sagrado e o profano. Cobertos por roupas grotescas e máscaras femininas, mesclam frases em guarani, português e espanhol; insultam, dançam, distribuem bebida como se fosse comunhão pagã. Suas ações performam uma purificação pelo riso e pela transgressão. Mas, diante da imagem da Virgem, ajoelham-se, silenciosos. O rito se suspende. Ali, entre o riso e a dor, refaz-se o pacto: fé e irreverência coexistem, como o fogo que queima e ilumina. O ritual continua com a Pelota Tatá, uma bola em chamas chutada de pé em pé, como uma oferenda efêmera à mãe-terra. A bola ardente, jogada em roda, evoca antigas festas solares, herdadas das práticas agrárias guarani e reinterpretadas pelas liturgias católicas.

Com o tempo, a festa cruzou outras fronteiras, a do folclore oficial, a do turismo cultural, a da arte espetacularizada. O Toro Candil passou a ser interpretado também pelos olhos do carnaval, do boi-bumbá, das festas juninas. Novos personagens foram incorporados: anjinhos, Nego Peão, Sinhazinha, Pajé, compondo um imaginário híbrido e barroco, característico das culturas mestiças. Uma nova narrativa foi inventada: o Toro atravessa o rio em busca da novilha Estrela, e desse encontro mítico nascem dois descendentes mágicos: o Touro Bandido, negro e selvagem, símbolo telúrico da força; e o Touro Encantado, azul e dourado, ser espiritual que revela tesouros ocultos.

Hoje, o que antes era um rito devocional tornou-se também um festival multicultural. O povo assiste, participa, julga e reinventa a história: todos os anos, o Bandido e o Encantado disputam a paternidade do Toro Candil em uma arena julgada pela própria Virgem. O resultado é sempre o mesmo: empate. Porque, no campo da cultura viva, não se trata de vencer, mas de pertencer.

Entre a brasa e a promessa, a máscara e o altar, o riso e a fé, continua o Toro Candil a romper fronteiras, não apenas através do rio Paraguai, mas das camadas da identidade fronteiriça, trazendo à tona uma história feita de deslocamentos, hibridismos e futuros possíveis.

Referências

CASTILHO, Maria Augusta de; PAIVA, Nívea Maria Mendes de. Patrimônio cultural na Festa do Touro Candil em Porto Murtinho, MS. Multitemas, Campo Grande, v. 43, n. 1, p. 53-65, jun. 2003. Disponível em: https://www.multitemas.ucdb.br/multitemas/article/view/264/309.

ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento econômico do pantanal sul-mato-grossense (1830-1910). Dourados: Ed. UFGD, 2011. 358p. ISBN: 978-85-8147-010-8. Disponível em: https://omp.ufgd.edu.br/omp/index.php/livrosabertos/catalog/view/27/42/114.

GIMENES, Marcos. A História da Cidade de Porto Murtinho contada pela Festa do Touro Candil. 2017. 19 f. TCC (Graduação) – Curso de Licenciatura em Geografia, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Porto Murtinho, 2017. Disponível em: https://faeng.ufms.br/files/2017/09/A-hist%C3%B3ria-da-cidade-de-Porto-Murtinho-contada-pela-festa-do-touro-Candil.pdf.

MARIN, Jérri Roberto. Fronteiras e fronteiriços: os intercâmbios culturais e a nacionalização da fronteira no sul do estado de Mato Grosso. In: Fronteiras: Revista de História, Campo Grande, v. 4/5, n. 7/9, p. 151-182, 2000/2001. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/FRONTEIRAS/article/download/13417/6849.

TEDESCO, Giselda Paula. “Toro Candil”: um componente da singularidade cultural em Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul. 2017. 118 f. Tese (Doutorado) – Curso de Pós- Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional, Universidade Anhanguera-Uniderp, Campo Grande, 2017. Disponível em: https://repositorio.pgsscogna.com.br/bitstream/123456789/12200/1/Giselda%20Paula%20Tedesco.pdf.

TEDESCO, Giselda Paula; ALVES, Gilberto Luiz. Toro Candil: tradição de uma fronteira ambivalente. Interações (Campo Grande), [S.L.], p. 29-42, 16 fev. 2018. Universidade Católica Dom Bosco. http://dx.doi.org/10.20435/inter.v19i1.1622.

TORCHI-CHACAROSQUI, Gicelma da Fonseca. A cultura sul-mato-grossense e sua condição mestiça: aspectos semióticos da manifestação popular do El Toro Candil. Boitatá v. 5, n. 18, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.5433/boitata.2010v5.e31170.

Author: Lucas Guerra

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