Recanto do Beija-Flor apresenta enredo para o Carnaval Virtual 2025

9ª colocada do grupo na edição passada, o GRESV Recanto do Beija-Flor apresentou o enredo que levará para a disputa do Grupo Especial, na edição comemorativa dos 10 anos do Carnaval Virtual.

De autoria de Alberto dos Santos de Lemos, a agremiação irá defender, em 2025, o enredo “O Príncipe do Areal: Ancestralidade e Resistência Negra no Sul do Brasil”.

Confira abaixa sinopse oficial:

O Príncipe do Areal: Ancestralidade e Resistência Negra no Sul do Brasil

Justificativa

A história da população negra no Brasil meridional há muito sofre o pior processo de invisibilização sistemática dentro de nosso país. O tradicionalismo sulista frequentemente exalta a figura do gaúcho como um homem branco de ascendência europeia, ignorando a presença negra e indígena na formação do estado. Nada como um personagem subversivo, contraintuitivo, para obrigar a historiografia a sair de sua zona de conforto. 

Exaltando a figura do Príncipe Custódio Joaquim de Almeida, a Recanto do Beija-flor presta uma pequena contribuição no processo de “desapagamento” do aporte dos negros para a formação do estado onde se encontra o maior número relativo de autodeclarados adeptos das religiões de matriz africana e afrobrasileira, o Rio Grande do Sul. 

A figura do príncipe carrega um peso simbólico, pois ele se tornou um ícone para o movimento negro e para as religiões afro-gaúchas. Entendemos que sua história não depende apenas de comprovações documentais, ela vive na memória coletiva e na afirmação cultural. Sua biografia não se encerra no passado. Ela continua em cada ritual, em cada canto, em cada ação da negritude gaúcha, pois os grandes ancestrais como ele nunca morrem. Exaltemos sua memória.

Um príncipe em terras gaúchas

“Ele era um príncipe de Porto Alegre. Ele não era um príncipe por ser filho do Ovonramwen Nogbaisi. Ele era príncipe dos pobres, príncipe do povo. Ele era reconhecido assim pela população”. (Rodrigo de Azevedo Weimer)

Fugindo do genocídio imposto pelos europeus na costa da Guiné, Osuanlele Okizi Erupê seguiu o caminho contrário de seus irmãos agudás. Nunca antes sequestrado e escravizado, ele cruzou o Atlântico para viver no Brasil, pouco tempo depois da Abolição oficial da escravatura. Aqui ele se estabeleceu como homem livre, imigrante, e assumiu o nome Custódio Joaquim de Almeida. 

Logo oficial do enredo

Depois de passar um tempo na Bahia e no Rio de Janeiro, recebeu orientação dos búzios para seguir para o extremo sul do Brasil, na província do Rio Grande de São Pedro. A região era sabidamente difícil, bem mais fria e com sequelas de sucessivas guerras, uma verdadeira encruzilhada de três países. Ali os negros escravizados haviam sido submetidos a sucessivos suplícios. Mas Custódio não foi à procura de lamentações.

E, de fato, o que ele encontrou em 1899, quando chegou em terras gaúchas foi luta e resistência. O período pós-abolição na província viu florescer fortes movimentos antirracistas que contrariavam narrativas hegemônicas. Pessoas negras lutavam por alforria, sua e de seus irmãos, e que, mesmo excluídos, não sucumbiram. Nesse cenário, Custódio chegou à província.

A alcunha de príncipe veio de uma suposta revelação de que ele seria filho de Sua Majestade Ovonramwen Nogbaisi, rei de Uidá, embora não existam provas documentais dessa filiação. No início do século XX, o Príncipe Custódio já era um personagem muito conhecido em todo o Rio Grande do Sul. Após residir em Rio Grande, Bagé e Pelotas, mudou-se para a capital Porto Alegre em 1901, supostamente a pedido do enfermo presidente da província, Júlio de Castilhos, de quem se tornou amigo. Fixou residência na Cidade Baixa, próximo ao local conhecido como Areal da Baronesa, um dos mais simbólicos territórios negros da cidade. Formado por populações negras libertas e seus descendentes, o Areal nasceu da ocupação de terras entre o centro e a Cidade Baixa, em uma área marcada tanto pela exclusão social quanto pela resistência cultural. Próximo dali o Solar da Baronesa, antigo casarão de elite, tornou-se ao longo do tempo um marco invertido: de espaço aristocrático, transformou-se em referência da luta por memória e pertencimento negro. A decisão de Custódio de viver no Areal, mesmo mantendo trânsito e relações com setores da elite branca, revela a complexidade de sua trajetória. 

Suas conexões com a política ajudaram a garantir sua posição social. Atuou como um mediador entre os populares e a elite, acolheu muita gente na sua casa, levava demandas de um lado para o outro. O comportamento de Custódio reflete a cultura agudá, grupo que costumava circular entre as camadas altas e baixas da sociedade.

O que tornava sua presença absolutamente marcante em Porto Alegre no início do século XX era a maneira como ele se apresentava ao mundo. Vestido com esmero, usando cartola, bengala, paletó e sapatos bem lustrados, Custódio desfilava pelas ruas centrais da cidade como um verdadeiro príncipe, causando uma subversão de ordem visual com sua simples presença. O corpo negro bem-vestido, limpo, perfumado, mostrava que a sujeira e a inferioridade associadas à negritude não passavam de ficções racistas. Sua forma de vestir era também estratégia de proteção em um contexto em que negros eram abordados constantemente pela polícia, vistos como suspeitos.

Os cavalos eram animais de adoração de Custódio, que tinha uma coudelaria nos fundos de casa e costumava sair em um landau puxado por dois corcéis brancos em dias de sol, e pretos em dias de chuva.

Suas chegadas às festas do Areal causavam comoção no povo pela grande pompa. Na ausência de monumentos, Custódio era o próprio monumento de uma cidade, que também era preta, onde os negros não eram figurantes da dor, mas protagonistas da honra.

Custódio também figura entre os ancestrais do Batuque, religião afro-gaúcha ainda ofuscada pela hegemonia do Candomblé. O Batuque caracteriza-se por sua forte e efetiva herança tradicional africana, que se mantém, apesar da longa convivência com uma sociedade ocidentalizada, além de enfrentar a repressão aberta ou velada. Também ficou conhecido como Pai Custódio de Xapanã, quando trabalhava como sacerdote, atuando principalmente em curas físicas e espirituais.

Um dos principais legados atribuídos ao príncipe é o assentamento do Bará no Mercado Público de Porto Alegre, com o propósito de abrir os caminhos da cidade. Ele também é associado à difusão do batuque no estado, religião de matriz africana presente nas cidades por onde passou.

Custódio Joaquim de Almeida consolidou seu respeito e reconhecimento em Porto Alegre principalmente por sua atuação religiosa e sua habilidade como comerciante. Segundo Silva, teria mantido uma banca no Mercado Municipal da cidade, além de treinar e negociar cavalos de corrida. Custódio era frequentemente procurado por membros da elite local para a realização de trabalhos religiosos, e foi graças à sua competência como líder espiritual que alicerçou sua notoriedade, perpetuando sua imagem na memória da cidade ao longo das décadas e seu maior prestígio está ligado ao seu trabalho como sacerdote do Batuque. Sua figura é tradicionalmente associada à realização de diversos assentamentos sagrados em Porto Alegre, sendo o mais famoso o do Bará do Mercado Público. Embora haja debate sobre a autoria desse assentamento, sua ligação com o local reforça o imaginário afro-gaúcho que o associa ao fortalecimento das práticas religiosas de matriz africana na cidade. 

Além de atender a pessoas famosas na cidade, Pai Custódio também prestava auxílio financeiro e acolhimento a africanos e afrodescendentes que viviam na penúria ou atravessavam dificuldades. Através de sua liderança religiosa, essas pessoas encontraram meios de consolidar sua identidade sociocultural, perpetuando práticas e valores da cultura e religiosidade afro-gaúcha. Sua casa de religião era, para muitos, o principal espaço de apoio material e espiritual, onde podiam buscar soluções para os mais diversos problemas. A ligação com o Príncipe Custódio representava, para essas comunidades vulneráveis, uma esperança concreta frente aos infortúnios da exclusão social.

O príncipe e sua realiza presentes

Hoje o legado dessa resistência representada em Custódio está presente em diferentes bairros da cidade, terreiros, centros culturais, grupos de dança e coletivos artísticos trabalham para preservar, afirmar e reinventar tradições negras. A oralidade, a música, os ritos religiosos e a ocupação simbólica de espaços públicos tornaram-se ferramentas centrais para reivindicar visibilidade e combater o racismo estrutural.

Uma das expressões mais fortes desse movimento é a luta pela preservação dos terreiros e das religiões de matriz africana. As celebrações públicas, como a lavagem da escadaria da Igreja Nossa Senhora das Dores e a festa do Bará do Mercado, afirmam a presença negra no coração da cidade e reivindicam respeito à liberdade religiosa.

O fortalecimento da memória negra também passa por iniciativas de mapeamento de terreiros, biografias de figuras históricas como o próprio príncipe Custódio e atividades educativas mostram que a memória negra é viva e dinâmica, não apenas uma lembrança do passado. O campo artístico também tem se destacado nesse processo. Grupos de teatro, saraus de poesia, festivais de música e danças afro-brasileiras vêm ocupando espaços culturais e ruas, trazendo a estética e a força da cultura afro-gaúcha para o centro do debate público, reafirmando a ancestralidade e criando novas narrativas sobre ser negro no Sul do Brasil.

O som grave do tambor de sopapo voltou a ecoar em Porto Alegre como um chamado ancestral. Depois de décadas de invisibilidade, o instrumento típico da cultura negra sulrio-grandense, criado pelos descendentes de africanos, ressurgiu como símbolo de resistência e reapropriação cultural. Esse resgate do sopapo não é apenas musical; é político e espiritual. O sopapo era veículo de comunicação com o sagrado, uma extensão da alma negra no Sul do Brasil. 

Ao lado do sopapo, outro movimento ganha corpo: o resgate da memória negra no carnaval de Porto Alegre. Durante muito tempo, o carnaval porto-alegrense foi embranquecido nas narrativas oficiais, apagando a contribuição decisiva dos clubes e blocos negros que criaram as bases da festa popular. Nos últimos anos, iniciativas como o Carnaval da Restinga, o fortalecimento dos desfiles no Complexo Cultural do Porto Seco e o surgimento de blocos afrocentrados trouxeram de volta ao centro do debate a importância da cultura negra no carnaval da cidade. 

Assim como o tambor de sopapo, o carnaval negro porto-alegrense é mais que celebração: é um ato de afirmação, memória e pertença. Em cada batida de tambor, em cada desfile colorido, reverbera a mesma energia que movia figuras como Príncipe Custódio. Mesmo diante do racismo e da exclusão, a cultura negra do Sul resiste, renasce e continua a ensinar o que significa existir com dignidade, beleza e força.

A Recanto canta a resistência através da memória

As discussões acerca das origens do príncipe Custódio são muitas; quando se fala de um príncipe africano que viveu em Porto Alegre e se tornou um símbolo para o movimento negro e a livre expressão de cultos afro-gaúchos, essa significação, porém, vai muito além de comprovações históricas, adentrando um imaginário identitário e de afirmação cultural que se mantém até os dias de hoje.

Muitos dos desafios que Custódio enfrentou, como racismo, invisibilização e exclusão urbana, ainda marcam a vida da população negra gaúcha. Mas há também continuidade na coragem, na criatividade e na capacidade de reinvenção. Custódio, que já caminhava com cartola pelas ruas para afirmar sua realeza negra, hoje inspira jovens que erguem faixas, microfones e tambores para afirmar seu lugar no mundo.

O Príncipe do Areal não deixou monumentos de pedra, mas ergueu memórias de força. Hoje, mesmo que os ventos modernos soprem outras músicas pelas ruas da capital, há quem ainda sinta, entre o cheiro da terra molhada e o eco distante dos tambores, a passagem de um homem de cartola, sorriso sereno e olhos firmes, conduzindo, em seu passo lento e majestoso, a dignidade de um povo.

Author: Lucas Guerra

Share This Post On