Estreante no Carnaval Virtual, a ESV Riachuelo apresentou o enredo que levará para a disputa do Grupo de Acesso II na edição comemorativa dos 10 anos do Carnaval Virtual.
De autoria de Gabriel Oliveira, a agremiação irá defender, em 2025, o enredo “Ngoma Chamou – Batuques em Terreiros Paulistas”.
Confira abaixa sinopse oficial:
Ngoma Chamou – Batuques em terreiros paulistas
“…Se não nos deixassem tocar os batuques, nós, os pretos, faríamos do corpo um tambor. Ou, mais grave ainda, percutiríamos com os pés sobre a superfície da terra e, assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro.”
Num tempo onde o tempo ainda era menino, o mundo foi criado no pulsar de um tambor. O primeiro toque não foi apenas som — foi sopro de vida, foi reza, foi criação.
Ngoma: tambor sagrado dos povos bantu, não nasceu para o silêncio. Ele vibra como o coração da terra. É palavra sem boca, é canto de espírito, é dança de ancestrais.
Zambiapongo, o Ser Supremo, entristecido pela solidão do poder absoluto, cogitou abandonar a criação. Foi quando os inquices — forças da natureza e filhos do Criador — tentaram reacender sua esperança: Katendê ofereceu banho de folhas, Zaratempo, criou as estações, Matamba dançou com o vento, Vunji trouxe a inocência das crianças., Angorô pintou no céu o arco-íris., Gongobira tingiu os rios com peixes coloridos, Dandalunda mostrou a força das águas, Mutalambô flechou o pássaro gigante, Nkosi forjou ferramentas para o novo mundo e Lembarenganga guiou cortejos de pombas e caramujos., cada nkisi ofertou seu dom. Mas foi Zazi, senhor do fogo, quem moldou o tambor primordial: escavou a madeira, esticou o couro, e fez soar o primeiro Ngoma.
No instante em que o som ecoou, Aluvaiá dançou — e a criação retomou seu ritmo. Foi o início da primeira festa da manhã do mundo.
Ngoma chamou — e Zambiapongo soprou a vida.
Ngoma atravessou oceanos na travessia da Kalunga, não como dor, mas como encantamento. Protegido por inquices, orixás e encantados, chegou ao Brasil como quem retorna ao ventre: pronto pra renascer. Nas mãos de filhos de Angola, Congo e Moçambique, encontrou novo chão para pulsar.
No interior paulista, o tambor firmou raiz, nas festas de São Benedito, nos batuques de Pirapora, nas congadas de Sorocaba, nos jongos de Embu, nas rodas de cururu, nas folias de reis e nos terreiros: Ngoma virou bumbo, virou tambu, umbigada, cordão umbilical. Cada toque era elo com o invisível. Cada dança, resistência.
O samba rural nasceu desse chão batido, entre a fé e a farra, com um pé no santo e outro na batucada.
E quando o povo negro migrou para a cidade grande, levou consigo o tambor. Na Pauliceia, o batuque encontrou novos quintais e alpendres, outras mãos, outros sons.
Nos becos da Barra Funda, nas ladeiras do Bixiga, nas ruas do Glicério:
ali floresceu o samba urbano, que formou cordões, fundou escolas, se espalhou pelos bairros e preencheu o concreto com ancestralidade.
Foi ali que surgiram os cardeais do samba paulistano: Pé Rachado, da Vai-Vai; Inocêncio Mulata, da Camisa Verde e Branco; Madrinha Eunice, da Lavapés; Seo Nenê, da Vila Matilde; e Seu Carlão do Peruche, o último dos cardeais. Seus nomes são tambores que nunca se calam. E é por eles — e por tantos outros — que se canta, que se desfila, que se celebra.
Mas, com o tempo, o povo preto foi expulso dos centros.
As reformas urbanas empurraram os quintais para as periferias.
O caso da Vai-Vai é um retrato: desapropriada para virar estação de metrô, em nome de um progresso que apaga memórias. O concreto teima em tentar nos paralizar.
Os sambistas de rua, como Pato N’Água, morrem sem glória.
Mas seus nomes ecoam no silêncio que antecede a batida do surdo.
“Silêncio, o sambista está dormindo… Ele foi, mas foi sorrindo.”
Ngoma não só celebra — denuncia!
A profissionalização do “batuque” impôs pastas, notas, tempo cronometrado.
Mas e o batuque livre dos quintais? O samba ainda pulsa na periferia, nos interiores, nas quadras – quilombos urbanos. Ainda pulsa nos braços cansados dessa gente que batalha, nas mãos pequenas das crianças com tamborins de plástico.
Ainda pulsa no giro das baianas, nas mulheres negras que sustentam o mundo.
Ngoma não quer espetáculo vazio — quer memória em movimento. Quer terreiro, quilombo, quintal. Quer verdade.
Em 2025, quando o tambor soar na avenida virtual, não será apenas desfile: Será reza em couro e madeira.
Ngoma vai chamar, e quem tiver tambor no centro do peito vai entender o recado: O carnaval de São Paulo tem raiz. Tem herança. Tem força.
Ngoma chamou!
O coração respondeu, pra lembrar de onde viemos.
E, sobretudo, pra mostrar para onde vamos.