Fazendo a sua estreia no grupo, o GRESV Unidos de Franco da Rocha apresentou o enredo que levará para a disputa do Grupo Especial, na edição comemorativa dos 10 anos do Carnaval Virtual.
De autoria de Tiago Herculano, a agremiação irá defender, em 2025, o enredo “Gárgulas, monstros e demônios: O animalesco medieval no Brasil festivo”.
Confira abaixa sinopse oficial:
Gárgulas, monstros e demônios: O animalesco medieval no Brasil festivo
A cultura europeia, principalmente a ibérica,
que forma uma raiz-tronco da cultura brasileira,
está povoada de elementos populares
(Suassuna, 2008, p. 155).
O Ariano Suassuna foi um escritor, poeta e dramaturgo que valorizou a cultura popular nordestina em sua Arte Armorial. Ele acentuou que a cultura popular nordestina teve influência nas narrativas folclóricas e teatrais do medievo. Muitos dos festejos populares nordestinos, seu panteão de criaturas, cantigas e literaturas foram atravessados pelas narrativas advindas de Europa medieval, e no Nordeste, essas narrativas, em muitos casos assombrosos e animalescos, foram recodificadas pela cultura popular. A escola de samba virtual Unidos do Franco da Rocha aborda as relações das narrativas europeias assombrosas e animalescas, que vieram ao Brasil por advento do invasor português, sedimentaram a cultural popular nordestina, cujo, as criaturas do seu panteão popular ressignificam possíveis narrativas de uma Europa medieval e estão presentes tanto na Arte Armorial quanto nos Folguedos de um Brasil festivo.
SINOPSE
O desfile começa apresentando as narrativas de assombração e temor de uma Europa Medieval. Com título de “Uma Europa assombrada pelo desconhecido”, o primeiro setor apresenta uma sociedade Europeia que vivia cercada por muros. Dentro deles, a sociedade era entendida como civilizada, lá fora, além dos muros, tudo que existia era tratado como bárbaro e selvagem. Neste contexto, surgem personagens animalescos como o “Homem selvagem”, que assombravam as regiões externas das muralhas. Nos festejos medievais carnavalescos, as pessoas se vestiam destas criaturas como forma de “afastar os espíritos dos mortos que, acreditava-se, rondavam pelo mundo naquele período” (Ferreira, 2004, p. 31). Desta forma, “a fantasia do homem selvagem, por sua vez, se referia a um personagem bastante conhecido da literatura medieval que, dizia-se, vivia no fundo das florestas, cercado de animais selvagens, com cabelos desgrenhados e o corpo coberto de pelos” (Ferreira, 2004, p. 31). Esta Europa, assustada pelo desconhecido, viu na floresta seu maior temor e criou as narrativas de seres animalescos que a habitariam.
O segundo setor, chamado de “Um gótico animalesco”, traz o período do Baixo Medievo, conhecido pela arte gótica que ornou as igrejas com figuras animalescas das Gárgulas, criaturas em forma de pássaros monstruosos, para educar os fiéis a temer o pecado, essa ideia da monstruosidade medieval invade a cultura popular do trovadorismo e ganha imagens assombrosas a partir dos contos e festejos populares. A imagem do assombroso começa a ser criada pela imaginação popular de uma sociedade medieval domesticada pelo medo, mas, pela cultura popular medieval, o povo festejava com o panteão animalesco que temia. O carnaval se torna o palco onde esse animalesco participa dos festejos da sociedade (Bakhtin, 1999).
O terceiro setor, com título de “O monstruoso colonizador”, trata de quando o homem avança para o mar por meio das navegações na busca pela exploração de outras terras. Foi assim que o invasor levou consigo essas narrativas assombrosas e tornou animalesco tudo que desconheciam. O mar se torna palco para suas narrativas temerosas em relação ao desconhecido oceânico. No enredo da Unidos da Tijuca para o carnaval de 2024, intitulado “O conto de Fados” do carnavalesco Alexandre Louzada, aponta que
[…] os navegantes portugueses detalhavam, em suas crônicas, os monstros marinhos e as criaturas míticas que acreditavam ver nos oceanos por onde passavam. A qualquer sinal de intempéries, escuridão, nevoeiro ou mesmo animais, os navegantes ficavam em pânico nas embarcações. Os monstros marinhos, segundo as crenças da época, eram considerados predadores vorazes, destruidores dos navios. Essas criaturas dizimariam os tripulantes, saqueariam mantimentos, trariam o caos (Louzada, 2024, p. 394).
O europeu vai transformando seus temores em imagem e delas surgem monstros que destroem embarcações, criaturas que surgem das brumas, assombrações devoradoras de tripulantes, entre outras narrativas. Elas vão se popularizando à medida que são escritas, cantadas, pintadas e, desta forma, um repertório animalesco acaba sendo difundido e chegando as terras brasileiras. Chegando ao Brasil, o colonizador imaginou as narrativas indígenas pela sua monstruosidade. Com objetivo de explorar a nova terra recém-invadida, o português começa a impor o mesmo senso civilizatório que tinha na Europa. Veste os nativos na mesma velocidade que transforma os seus rituais, suas cantigas e suas narrativas em demônios. O paraíso descoberto era o local do pecado, mas “o inferno […] não eram os outros, os outros não eram os monstros, as criaturas abomináveis eram eles próprios [colonizadores], que escravizaram e dizimaram, por meio de violência incomensurável, populações inteiras. Eram esses, sim, os verdadeiros monstros marítimos colonizadores” (Louzada, 2024, p. 396).
No setor quatro do desfile, nomeado de “Monstros ibéricos-brasileiros”, a escola apresenta a perspectiva que nas terras brasileiras essas narrativas europeias ganharam novos significados pela encantaria e pelo popular. A história do rei português Dom Sebastião, que foi morto em uma guerra, ganha nas terras dos lençóis maranhenses, no estado do Maranhão, uma narrativa encantada. Ele seria o Touro Negro Coroado, uma criatura com uma estrela na testa cuja espada está cravada. Se a mesma for retirada o rei desencantará e voltará a reinar para tornar Portugal em um grande império. Na encantaria dos festejos populares nordestinos, o rei volta sim à vida, mas pela encantaria, pela dança do boi e todo um conjunto de festividades maranhenses, não para reinar em Portugal, mas para transformar a cultura popular em festa. É na cultura popular brasileira que o rei reina em festa capaz de ressignificar seu retorno não como uma criatura assustadora, mas como pertencente à identidade festiva de um povo. É por meio deste cortejo que apontamos que “na idealização de Ariano Suassuna, as referências ibéricas e medievais, no ápice da experimentação e aplicação do manifesto armorial, seriam substituídas por figuras do sertão brasileiro para que nosso povo e sua arte fossem celebrados com a mesma grandeza das artes eruditas” (Quintaes, 2024, p. 50).
É a partir da encantaria dos festejos populares que “O Brasil Festivo”, nome do último setor da escola, encerra o desfile apresentando o quanto esta cultura europeia e seu panteão animalesco ganharam outras vertentes fazendo parte da cultura popular brasileira. Um exemplo está na criatura da Bernunça, presente na festividade Boi de mamão de Santa Catarina, que é “[…] uma espécie de bicho-papão da Galícia e Portugal que ‘engolia’ crianças mal comportadas, representada por um indivíduo usando uma capa ou um dragão. […] Se a Bernunça chegasse perto da criança, e esta não gritasse ‘abrenuntio’, era engolida” (Silva, 2019, p. 52). O imaginário que trouxe essas criaturas da Europa ganhou no festejo popular o palco para suas encenações, nele, a cultura brasileira foi ressignificando-os ao ponto de criar a sua própria identidade.
Ainda neste setor, a cultura europeia chegou ao Brasil de diversas formas, uma foi por meio do trovadorismo que valorizou a sabedoria popular. No nordeste, o trovador virou repente. Ele criou cantigas e cordéis que propagaram a imaginação popular. Esse saber popular foi responsável por criar novas criaturas, monstros e saberes que contaram a história de um povo. Essas literaturas e essas narrativas assombrosas, ao encontrarem o Brasil das festividades populares, influenciaram na cultura Armorial do Ariano Suassuna.
O movimento de Suassuna bebeu dos saberes de várias referências de livretos e folhetins ibéricos. […] Foi assim que Suassuna transformou em arte a busca por essa nova identidade cultural que valorizasse a brasilidade da nossa gente. Então o sertão se tornou palco de um grande reinado onde o povo é realeza! A musicalidade ficou por conta dos folguedos populares. Brasões, xilogravuras, pinturas, livros e peças teatrais nasceram misturando elementos medievais com elementos do nosso sertão (Quintaes, 2024, p. 49).
O desfile termina homenageando a cultura popular nordestina, por meio do movimento artístico do Ariano Suassuna, que ressignificou essa influência narrativa animalesca medieval. O cortejo carnavalesco se encerra com homenagem ao dramaturgo que deu asas as onças brasileiras, a “[…] onça caetana desenhada por Suassuna que tem como detalhe de decoração ferros que eram utilizados para ferrar boi no sertão e se tornaram inspiração para criação de toda tipografia utilizada nas obras de arte do Movimento Armorial” (Quintaes, 2024, p. 50). O sertão nordestino ganha ares medievais para mostrar sua origem trovadoresca e para representar os elementos do sertão que invoca, na encantaria, todo um panteão de monstros e criaturas do popular festivo do nosso país.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1999.
FERREIRA, Luiz Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
LOUZADA, Alexandre. Unidos da Tijuca: O conto de Fados In: LIESA. Livro Abre-Alas 2024: domingo. Rio de Janeiro: LIESA, 2024. p. 377-458. Disponível em: https://liesa.globo.com/downloads/memoria/outros-carnavais/2024/abre-alas-domingo-carnaval-2024.pdf. Acesso em 16 abr. 2025.
QUINTAES, Mauro. Unidos do Porto da Pedra: Lunário Perpétuo – A profética do saber popular. In: LIESA. Livro Abre-Alas 2024: domingo. Rio de Janeiro: LIESA, 2024. p. 03-94. Disponível em: https://liesa.globo.com/downloads/memoria/outros-carnavais/2024/abre-alas-domingo-carnaval-2024.pdf. Acesso em 16 abr. 2025.
SILVA, Carlos Eduardo da. O boi de mamão: teatralidade performatividade e musicalidade no folclore catarinense. In: Piragibe, Mario Ferreira (org). Estudos em performance e performatividades. (Coleção Artes da Cena). 1ed. Jundiaí: Paco, 2019, v. 1, p. 47-69. Disponível em: https://www.pacolivros.com.br/estudos-em-performance-e-performatividades-vol1?srsltid=AfmBOoochaihxA0-7RbwSVtS4eeu5Lruq3bcf8mCxKxNPx2aw6THbTG9
SUASSUNA, Ariano. Almanaque armorial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.